Era a namorada que, após algumas semanas comigo, chegou dirigindo seu caminhão de mudanças e me ordenou: entra! Subi na carroceria e, surpreso, deparei com todas as minhas coisas acomodadas ali. Quem disse que eu queria isso? Vociferei uma praga horrenda quando o veículo entrou em movimento e num zás aquela joça perdeu o freio, entrando de mau jeito na esquina do final da lomba, virando na curva e esparramando tudo pela praça. Antes mesmo que a poeira baixasse, pobre moçoila já se atirava em desespero na tentativa de juntar a cacaria.
Os segredos ficaram deveras contentes por reencontrar a sombra do guarda-chuva extraviado. Umberto Eco e Veríssimo subiram até o parquinho, onde Foucault gargalhava após trocar seu pêndulo por um balanço vermelho. Meu olhar de desconfiança caiu direto sobre a mão que já movimentava uma caneta de desenho. Alemão Blau escapou do livro de tiras para levar uma cerveja ao general, que há décadas vinha passando sede comandando o monumento aos mortos no Paraguai. Inconformidades saltitantes pousadas na copa das palmeiras cagavam sem escrúpulo na cabeça da auto-censura, enquanto um rebanho de anedotas debochava gordamente à passagem da roupa de domingo.
Pela sarjeta escorrem vários amores, mas, antes que cheguem à boca-de-lobo, jogam âncoras para observar um cachorro que arrasta pelos cabelos a minha galinha mais pervertida. O baú da hipocrisia faz que nada vê, trancado junto a um poste, sem perceber que o cinismo, livre do seu frasco, já lhe arromba o cadeado.
Cacoetes fazem algazarra sobre os fios de luz, provocando o riso dos pardais. Caricaturas se libertam das pastas e se amontoam no campinho de futebol, onde as canelas são sempre mais importantes do que a bola. Meu anjo da guarda, cuja verdadeira vocação era a de árbitro, tem as asas depenadas em 32 segundos. As boas idéias pulam pela calçada vestindo minhas cuecas – que é onde ficam a maior parte do tempo. A decência e a vergonha conversam com a libido ao redor de uma garrafa de testosterona.
Sinto a piedade por perto, mas é o sadismo que se aboleta sobre a porta quebrada de um armário, deliciado com o espetáculo. As revistas de mulher pelada se desmancham ao vento, e acho que nunca a praça ficou tão florida.
Tudo o que tenho está ali, esparramado na desordem do acidente. Fico dono daquilo de que abro mão, do que dou ao mundo. O essencial carrego comigo. E isso a moça jamais vai entender. Passará horas ou dias tentando juntar a minha mudança que ela tanto queria. Então, quando o caminhão estiver novamente consertado e cheio, somente a tralha inútil terá restado.
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hehe...ainda bem que não tenho caminhão de mudanças...
ResponderExcluirTe ofereço uma caroninha às vezes...
Eu vou de música de rádio AM:
ResponderExcluir"Eu só gosto dessa moça
Porque tem vegetação
Porteira de pau a pique
Três pneus de caminhão
Peido de jumenta ruça
E haja chuva no sertão"
EEEEIIITTTAAA!!!!