Um bom boteco ganha notoriedade pela fauna que se aboleta em seu regaço para molhar o bico e procurar a salvação para o mundo. E namorar, se der tempo. Os outros bares e lancherias do bairro, de forma pejorativa, se referem a ele como "o bar dos bêbados", como se a emborrachação ocorresse apenas lá. Mas não seria de todo errado afirmar que a concorrência esconde uma inveja do boteco pela riqueza humana encontrada em seu recinto – e pelo mistério que leva uma fauna tão rica e surpreendente a se reunir num lugarzinho apertado e sórdido.
Justo quando essa gente poderia muito bem ir a locais iluminados, aparentemente asseados, com televisão ligada em futebol full-time e que se nega a servir martelinho no balcão.
Todavia, a mais heróica fauna do boteco nem chega a ser humana, embora tenha potencial comprovado pra isso. Ela vive no local e do local, coisa que muito sujeito só não faz, porque o bodegueiro o varre para fora antes de fechar.
Sob a ótica da ciência, um ponto guarnecido por gatos não deveria ser infestado de ratos. Mas a lógica do conhecimento não encontra guarida no boteco. A natureza é sábia quando adapta o espírito da casa para as diferenças desse ecossistema. O gato desfila por baixo das mesas e senta-se no degrau da frente, roçando as pernas dos fregueses, enquanto os ratos andam por baixo do balcão e fazem a festa na despensa.
O rato de boteco é diferente dos seus parentes de outros lugares. É uma mutação surgida durante a Peste Negra, robustecida na Europa devastada, que migrou em navios portugueses e espanhóis para fazer a vida e engordar no novo mundo. O primeiro europeu a pisar nas margens do Guaíba não foi um nobre lusitano, mas sim um ratão que comandou um motim e tirou a embarcação do naufrágio na barra de Rio Grande. O que fez depois de ingerir quatro litros de rum. Cadê a estátua desse magnífico roedor?
Os ratos e o gato do boteco se respeitam numa tolerância reverente. O gato não incomoda os ratos em troca do direito de partilha nos ataques ao almoxarifado, ao lixo, à cozinha e aos pratos de petiscos. O mais cobiçado é a lingüiça calabresa que navega em azeite no mostruário de vidro em cima do balcão, ao lado do vidro de ovos roxos em conserva. Quando um freguês pede a calabresa, todos os animais da casa param em sinal de respeito, como se fizessem continência à bandeira nacional. Pode ser a última visita do sujeito ao boteco. Ou pior, muito pior, pode ser a última calabresa da casa. O que mais se deseja é que sobre um pedaço e que ele seja jogado no lixo, onde será feito um banquete romano.
As baratas, que funcionam como batedores nos espaços mais remotos e inacessíveis do boteco, metem-se nas frestas em busca de sinais alvissareiros. Na possibilidade de algum manjar ser descartado, os machos abrem a porta do freezer para que os ratos roubem a cerveja, enquanto o gato faz a guarda. O gato cobra caro por este serviço, e já foi visto pegando ficha em reunião dos AA.
Restam os cachorros sobreviventes. Se há um gato se lambendo na porta, há ratos e baratas jogando pôquer lá nos fundos. Os cachorros atravessam a rua e desviam o olhar do boteco arrepiados de medo. Já ouviram falar do ritual de passagem daqueles ratos para a vida adulta. O candidato precisa devorar um poodle e cuspir a coleira sem que a bicha na outra ponta da corrente perceba. O clima ficou mais tenso quando começaram a aparecer focinheiras mastigadas na calçada...
(Publicado em http://www.muffuletta.com.br/ em 2008)
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Acho que eu vi um gatinho..eu vi sim!!
ResponderExcluirUm boteco sem lingüiça calabresa navegando num oceano de azeite e sem vidro de ovos roxos em conserva não é um estabelecimento de respeito. Parabéns, Alemão. Crônica supimpa.
ResponderExcluirFunerária em anexo, gerenciada pelo apontador do Jogo do Bicho.
ResponderExcluirBela descrição do Paraíba, na Duque, pertinho do Tutti.Baita texto, mestre Bier!
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